quarta-feira, agosto 04, 2010

Da fuga…, via Ponferrada.

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Naquela madrugada, o roncar das ferrovias, os tumultos da continuada fuga. Ficava à retaguarda, o estrondar das bombas. As correntes de água, o cascalho de ferro, o desabar das galerias. Os mortos, o voar do meu corpo, na boca da mina. Minério, o ferro, os vagões, a gelemonite. Os berros de sangue incandescente… E as pulgas, pelas tarimbas de quem nas mina trabalhava, pululavam de alegria, carne fresca, ainda. Mais a fome incrementada. A água, quente de nada, aquecia, a fruta roubada. O lenço roxo, pelo pescoço, a vaidade, a frescura dos hipies, a promessa à rapariga dada. O meu caceteiro, o pai, o velhote, de nada. A mãe atraiçoada, o filho, um mineiro em Ponferrada. "Que cortau o el pelo, que não levas nada".
Por Chaves, a fuga, pelos campos e pelos canais da levada. A Pide, sempre presente, a aldrabice, a chicotada. A noite pela calada. A fronteira, a alvorada. Tinham sido os comboios ronceiros, Tua acima, os soldados, a carne, alguma, em debandada. Depois, os mortos da espingarda, que tombaram na noite passada.
Nas minas, as cartas da estalada, a paixão que nunca acontecera, terminara. São Miguel de Las Duenãs, os amigos da bota de vinho. Os castelhanos, os berros, a pancada. E os galegos, simplesmente, a amizade, os bocadilhos. As festas na aldeia. Os foguetes à solta, as doidas, as raparigas, a alegria, os presuntos, mais bocadilhos, a fome colmatada. O dormir, em tarimbas de portugueses, de novo as pulgas; a carta esperada. A alegria da carta, a tristeza da alvorada. Notícia, debaldada. A tristeza da carta. A rapariga do bairro. Mas nunca a amara. Só a ciciara. O corte de todas as esperanças.
O entulho do sentimento esfrangalhado, os suores, o vomitado. As ruelas da povoação, os saltos, as correrias. O cair no desespero, a febre que se fora. A cerveja que bebera. E logo, pela madrugada, o ferro, os vagões, de novo, as explosões, o vinho na bota, as ameaças de pancada, também a amizade, o refugio, do desespero.
Passados dias, os ferros carrilhos, , o outro sonho, o sonho, rumar a França. O destino. E o sol, por enquanto, ali no cais, esse tostava-nos o lombo, carne das explosões do aço, dos tanques e minas, de amigos os esfarelados. Também do amor da minha mãe, das coças, por mim, nelas caídas. Esse sol que empurrava a minha continuada fuga, a saída da placenta.
Terra escura, que me soltara cedo ao vento. E depois do cais, de Ponferrada, o comboio já entrara no emaranhado de túneis. Hendaya, o rumo. Para trás a anosa no cais; lenço preto a agitar as palavras da luta contra Franco, a Guernica, a destruição das populações, o estado de Portugal, a ocupação dos outros territórios, a miséria, a luta clandestina, a debandada.
Já no comboio, no seu corredor interno, pela madrugada, eu e o comparsa, sentíamos as pezadas. Os novos emigrantes espanhóis acossados, dobrados, entalados, colarinhos à vista, as boinas, as cestas, os açafates, algumas galinhas, a chama ardente, ali naquele compartimento, a noviça, as mamas oscilavam-se com o rodar do comboio. A velha mestra pela cobiça. O olhar, o convite, o colo, as tetas pendulares. E o trem inflexível, a rodar, e as ditas a abanar, a língua, sorvendo os líquidos, e eu a chupar. Os boinas a mirar, o meu amigo a drenar, a languidez a elaborar.
As formalidades. O destino. As autoridades francesas, a liberdade. Por terras de França, o trabalho a encontrar. Os outros amigos. A comidinha, por dar. A fome. Algum desespero. Os amigos de “Peniche”. A loucura na casa. A dormida com cinco na cama, a fome a avançar. A paranóia, o lugar, diziam, assombrado, e os meses a rodar. E de noite a cama a levitar. Eu a alertar. E dormiam, os outros, tinham que ir trabalhar. E de dia, a procura, na casa entre choupos. As chaves do sótão. A descoberta, a mesa abandonada com restos de comida e eu a chafurdar. Os brinquedos de crianças, as teias aranha, e eu a roubar roupa contra o frio. E de novo a cama a levitar, os sons da loiça a tombar. E eles, estás maluco, deixa-nos dormir e trabalhar, é só imaginação, vai-te embora. E a fome continuava. E os dias sempre iguais. E a partida, de novo às origens, ao regime.
E o comboio de novo, virado ao contrário. Irun à vista. Mas em Endaya, na linha do trem, novamente as espingardas, os tiros pelas costas, silvando, emitindo-se berros contra o retorno. O virar de costas, os de novo tiros ao calha.
E Irun penetrado, mais tiros. A entrada em Espanha. As boleias. De novo, São Miguel de Las Duenãs: repescar o lenço rouxo, o tecido de todas as frescuras, umas cartas por ali me esperavam.
Ela também não me amava, porém, dizia. Esfrego o grelo à tua pala.
Zamora em frente. Alcanices pela pista de Quintanilha. E os guardas fronteiriços, o mergulho no rio Maçãs. E, então a lembrança dos outros, dos tiros que mataram em Vila Verde da Raia, Feces de Abago à vista, não para os que não foram fuzilados.
Da fuga, o retorno, a mãe que muito chorara, o pai que muito me espancava. A vergonha, da merda que fora, já no hospital militar. O conselho de guerra, a suposta loucura. O restante pela terra, a terra pela qual eu, por mim e todos, lutara. A terra, a placenta, da minha mãe, que então me despejara.

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............................. - Virgilio Liquito -
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2 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado Alfonso.
Um abraço.
Virgílio Liquito

a porta verde do sétimo andar disse...

Não há de que! Sempre um prazer contar na porta verde com o bom fazer poético do grande Liquito! ;-)
Um abraço

- Alfonso Láuzara -